CIDADE DO HUAMBO - A VENEZA ANGOLANA....

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.           Dona Biatriz Kimpa Vita, a guerreira esquecida
 (c. 1682 a 1706)

Entre as guerreiras gloriosas, de que a humanidade guardará a eterna e agradecida memória, avulta a Dona Kimpa Vita, profeta popular no reino do Congo, uma precursora das figuras proféticas das igrejas independentes e a criadora de um movimento que utilizava os símbolos cristãos, mas revitalizou as raízes culturais tradicionais do Congo. Não usou espada, nem armas, não derramou uma gota de sangue humano, sequer. No entanto, encetou muitas batalhas na segunda metade do século XVII contra a desintegração cultural e um desarranjo político no Kongo (território que hoje faz parte dos atuais (Angola, Zaire e Kongo). As forças do reino do Ndongo haviam vencido o Kongo...
        No final de seiscentos, o Kongo possuía três reis, sendo D. Pedro IV o mais poderoso deles, aparentemente, e talvez o único capaz de levar adiante um projeto de reunificação congolês. Dentro desse vácuo cultural e político, diversos profetas messiânicos surgiram para proclamar suas visões sócio-religiosas. A mais importante entre eles foi Kimpa Vita, uma jovem moça que acreditava estar possuída pelo espírito de Santo Antônio de Pádua, um santo católico popular e realizador de milagres.  Na realidade a cristandade de Kimpa Vita já havia caído no sincretismo, uma mistura do cristianismo com as religiões tradicionais africanas...          
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Em Mbanza Kongo, o primeiro galo cantara, quando o manicongo, Dom Pedro IV, se levanta e convoca os mais-velhos para uma reunião importante cuja pauta principal é debruçarem-se sobre a situação caótica que vive o reino...
- Para além de sermos agora vassalos do reino do Ndongo, meus caros amigos, ainda temos um grande problema -  o começo das secas!  Benéficas as calamidades públicas que assolam, circunscritas, a nossa terra... Quando o sol - apontando um dedo em sua direção -, que deve reanimar a natureza mata as plantas e os viventes; quando os crepúsculos assemelham-se a fornalhas de cobre candente que abrasam os caminhos e os campos; e a fome e a morte levantam-se das plantações que torram, das fontes sem água como órbitas vazadas, do fumo que ondula em espirais fantásticas das matas que se incendeiam, o nosso povo e os seus sarcedotes devem refugiavam-se aos nossos antepassados, com o fim de obter deles intervenção no sentido de resolvermos os problemas que assolam o nosso reino! – Falou manikongo aos seus súditos.
- E a Cristo e a santo António também, Majestade! – Disse Vita, uma jovem aristocrata, nascida de família nobre congolesa na década de 1680, batizada como Dona Beatriz, mulher que fora sacerdotisa do culto de Marinda (nganga marinda), embora educada no catolicismo. Kimpa Vita contava entre 18 e 20 anos quando, cerca de 1702-1703, acometida de forte doença, disse ter falecido e depois ressuscitado como Santo António. E seria como Santo António que ela pregava às multidões do reino – daí o movimento ter ficado conhecido como antonianismo – seguindo o rasto de outras várias profetisas que lhe precederam na mesma tarefa, como a profetiza Matuta, em meio à crise que assolava o reino.
DOM PEDRO: Vita existe uma união indissolúvel entre nós, os nossos antepassados e as gerações futuras! Este traço de união é que põe em movimento o ritmo dos tempos e das estações do nosso reino e do universo; ela faz a chuva; implora a lua e o sol. Ela possui o raio, o vento, a trovoada...
E continuou...
- Para nós, a religião católica trazida pelos maniputo não se mostrou eficaz contra os infortúnios que assolavam o nosso reino. Não estão vendo?  Além disso, os nossos nobres resistem em aceitar a monogamia imposta pelos padres capuchinhos!
Na realidade é um dos temas mais polêmicos na aceitação da nova religião, uma vez que a extensão da rede de solidariedades tecida pelos casamentos era e é peça fundamental nas relações de poder tradicionais...
KIMPA VITA: Mas Majestade agora não somos todos católicos? Fomos batizados na religião do maniputo não devemos apenas fazer apelo aos nossos antepassados, a Cristo e a Santo António também! E finalmente, não vos posso dizer todas as coisas que podeis cometer em pecado; porque há vários modos e meios, tantos que não posso enumerar, mas uma coisa posso dizer-vos se não tomardes cuidado com vós mesmo e vosso pensamento, vossas palavras, vossas obras e não observardes  os mandamentos  de Cristo nem continuardes tendo fé, certamente perecerás! 
DOM PEDRO: Mas Vita o Deus do maniputo não fala conosco ao contrário dos nossos antepassados que são onipresentes?
O culto aos antepassados constituía como que a síntese da vida religiosa dos congoleses.
- Manicongo, não atendendo nós nas coisas que se vêem e se ouvem, mas sim nas que não se vêem e não ouvem teremos a misericórdia de Deus e a ressurreição; porque as que se vêem e se ouvem são temporais, enquanto as que não se vêm e não se ouvem são eternas! – Retorquiu Kimpa Vita a jovem mais bela congolense.

        DOM PEDRO: Não entendi muito do que falastes... E a ressurreição?

KIMPA VITA: Tu, Manicongo, melhor do que ninguém sabes que existe! Eu mesma com aos 18 anos acometida de forte doença morri e depois de ter falecido ressuscitei!
DOM PEDRO: Porque dizes ter falecido e não falecida? Tu não és uma mulher?
KIMPA VITA: Porque ressuscitei como Santo António, Majestade! E é como Santo António que eu vos falo e prego às multidões do nosso reino!
DOM PEDRO: Mas eis que tomarei estas tuas palavras que contêm profecias e revelações e pô-las-ei eternamente em minha memória porque me são preciosas; e sei que serão preciosas também para o meu povo!
 Embora ele não concordasse em tudo com D. Vita, tinha muito respeito pela sua autoridade. Foi ela quem o proclamou Rei do Congo em troca da sua adesão ao antonianismo. Assegurou-se ainda, por meio de vários acordos, da aliança de famílias nobres adversárias de D. Pedro, a exemplo dos grupos de Kimpanzu, especialmente da família Nóbrega, enraizada no sul da província de Nsoyo. Embora a sua pregação possuísse forte conotação política. Pois, preconizava o retorno da capital a São Salvador e a reunificação do reino, chegando mesmo a envolver-se nas lutas facciosas da época. No entanto, as alianças estabelecidas por Kimpa Vita, metamorfoseada