CIDADE DO HUAMBO - A VENEZA ANGOLANA....

quinta-feira, 18 de março de 2010

Caldeirada de cabrito à angolana




De: João Portelinha





Ingredientes

Cabrito

½ chouriço

Sal q.b., alho, louro, vinho branco

Batatas, cebola, tomate, pimentão, cheiro-verde, azeitonas pretas e pimenta - de - cheiro

Preparação

Corte o cabrito em pedaços e tempere de véspera com sal, alho esmagado, louro e vinho branco (vinhas de alho)

No dia seguinte coloque a marinada numa panela, leve ao fogo mas não o deixe cozer totalmente.

Descasque as batatas e corte-as em rodelas não muito finas.

Corte em rodelas a cebola, o tomate maduro, o pimentão e o chouriço e reserve-os num recipiente.



Numa panela disponha um camada de batatas, um pouco de cabrito e um pouco dos ingredientes juntos no recipiente. Disponha uma segunda camada de batatas, cabrito e os restantes ingredientes do recipiente.

Regue tudo com azeite.

Numa tigela à parte misture vinho branco, sal, pimenta de cheiro, polpa de tomate e uma pitada de colorau (páprica-doce de preferência) e deite tudo na panela.

Regue com vinho branco seco até cobrir o tudo. Deixe cozer e apurar bem.

Vá agitando a panela para não pegar no fundo. Quase no fim, coloque as azeitonas pretas, o cheiro-verde e a pimenta de cheiro!



Obs.: Acompanhe com salada e um bom vinho verde-branco ou tinto português (de preferência “casal Garcia”). O Caçulinha e o Atacadão vendem.

Preparação: Fácil

Tempo de preparação: Médio
SOLIDARIEDADE MASCULINA AO EXTREMO

João Portelinha


 Eurípides disse, certa vez, que era melhor estar três vezes em combate com escudo e tudo do que parir uma só vez!

Se a gravidez é felicidade para mulher, já não se pode dizer a mesma coisa do parto, que é complicado, sobretudo pelas dores que aumentam de intensidade, sendo, em princípio, espaçadas, reduzindo-se pouco a pouco os intervalos quanto mais se aproximam do seu término. Às vezes, para desgraça destas, o parto é acompanhado com eclampsia, que se manifesta por perturbações visuais e cerebrais, dores de estômago e, finalmente, tremores nos músculos da face, pálpebras e lábios, etc. Quer dizer, “dar à luz” não é fácil, Não é por acaso que as mães dizem que suas filhas que, quando forem mães, saberão certamente o que é ser mãe. Mas o meu propósito aqui não é alarmar ninguém sobre a “condenação” da mulher apregoada em Madéias: - Engendrarás na dor, disse Deus à mulher. Nem tão pouco fazer um tratado de medicina.

Em toda história da humanidade, sempre se pensou acabar ou pelo menos amenizar as dores de parto. E sempre também questionou-se o papel masculino, a participação do homem na geração da prole e a possibilidade de alguma solidariedade masculina para as parturientes.

Entre alguns índios, de acordo com o meu amigo professor Eustáquio Grilo, na altura em que a índia está de resguardo, o esposo fica em casa de resguardo também, podendo ser até mais radical, ou seja, mais próximo do repouso absoluto. Isto é, segundo o ilustre professor, talvez seja conseqüência da crença de que a boa gestão exige, digamos, o contínuo fornecimento de matéria-prima. O que, no caso, significa esperma e, por isso, implica manter relações sexuais diárias com a esposa grávida. Não é uma forma de solidariedade masculina?

Nas aldeias africanas, a gravidez é também um período carregado de tabus e mistérios. A grávida é influente e tem toda solidariedade e carinho, não só do marido, mas também de toda comunidade. Aqui o curandeiro dispõe de um aparato de variadíssimos recursos assistenciais e mágicos para libertá-la de um parto com dor. O engenho dos especialistas da magia parece tão inesgotável e variado que inclui no seu bojo uns tantos milongos (feitiço) para transferência das dores para o marido.

A minha irmã Etelvina resolveu a passagem da dor para o marido na hora. Quando estava a ter o nenê, mordeu decididamente o marido... e tudo ficou resolvido. Não foi preciso curandeiro nenhum...

Ao contrário dos índios, os maridos da sociedade tradicional africana, também por solidariedade, abstêm-se de toda relação sexual desde o começo da gravidez. E quando a esposa está a dar à luz, geralmente de cócoras, o marido deve sair de casa para que não ocorram influências mágicas perigosas. Caso sejam detectadas, devem ser contrafeitas com rapidez pelo curandeiro. Ao contrário do índio, que por solidariedade à mulher.

No Huambo, as aldeias são o lugar onde a cultura tradicional está mais arraigada. Quando o parto é difícil ou trata-se de um caso extraordinário, deve intervir imediatamente a parteira tradicional ou os ginecólogos tradicionais. Nestes casos quase sempre se imputa a culpa ao marido. Crê-se que geralmente estes males são ocasionados pela infidelidade masculina. A infidelidade paterna é sempre considerada muito nefasta. Nestes casos, a parteira implora-lhe que se redima obrigando-o, na presença da mulher, a dizer todas as amantes que já teve, pelo menos na fase de gestação, para que desta feita se facilite o trabalho de parto e, por força da retratação do seu pai, o bebê nasça bem. Outra forma de solidariedade masculina.
Um amigo meu esteve também numa situação bem pouco confortável. A mulher estava com dificuldades no parto e a parteira mandou-o chamar para dizer o nome das suas amantes. Como a lista era enormíssima, uma das suas tias sugeriu que então se fosse ao hospital, porque o infeliz nunca mais terminava com os nomes. A criança nasceu no hospital todo vermelhinho por ter estado tanto tempo preso à bacia da mãe – hoje chama-se Indo, fazendo jus à coloração avermelhada como nasceu.
Um caso, porém, pode ser considerado como exemplo extremo de solidariedade masculina. É um caso inédito que se passou no interior do Brasil, contado também pelo nosso amigo Grilo:
Na casa de uma família cabocla, havia três compartimentos: dois quartos, intermediados por uma sala. Uma parturiente estava num quarto a ter o bebê. Num dos pulsos tinha amarrado um cordel, o qual, subindo e passando por sobre os caibros, ia ter no quarto vizinho. Aí descia e tinha a outra ponta amarrada... adivinhem?... Lá mesmo, nos penduricalhos do marido. Conforme doía, a mulher puxava espasmodicamente o cordel e assim o marido sofria junto. Nos dois lados era um berreiro sem fim.

Haverá melhor exemplo de solidariedade masculina?

Oxalá que a moda não pegue, senão estamos todos fritos...



POEMA CULPA DE JOÃO PORTELINHA

CULPA



(Para as crianças vítimas da guerra em vários países)



Que culpa temos da tua miséria?

De ficares sem lar, sem os teus pais, passares fome, sede?

Que culpa temos de teres nascido?

De seres preso ou morto quando roubas para comer.

Que culpa temos de seres tão... Chatinho... Sempre: tio dá só um trocado,

Dá uma gasosa, tio...

Que vergonha!

Que culpa temos que ao seres preso e durante todo o interrogatório digas que nós adultos é que temos toda culpa...

Que blasfêmia!

Que culpa temos por não teres eira nem beira?

Por venderes cigarros nas ruas, engraxares nossos sapatos... Lavares nossos carros... Prostituíres... Não ires à escola... Que culpa temos por haver guerra, por teres dado tua inocente vida para libertares o nosso belo país, como fizeram milhares de crianças por esta terra a fora?

Agora por favor, quando à volta da fogueira nos dizes que até as estrelas são do povo.

Fazes-nos rir, nem pão tens... Agora estrelas!

Que culpa temos, que negues sempre a tua culpa?

Que culpa temos, ainda, que tu, criança, morras prostrado nas ruas, sob os olhares carniceiros de milhares de adultos...

e nem revelas a tua malfadada existência?

Toda!



In “Sentir a Terra nas vozes Populares” de João Portelinha
AS DUAS CIDADES QUE EU AMO !!!

Autor: João Portelinha


No momento em que escrevo esta crônica... Chove. Aquela chuva de mansinho que inspirou os poemas de Fernando Pessoa e que me inspira neste momento. Lá fora escuto, caindo no toldo da minha varanda, as primeiras gotas de chuva de hoje. Logo outras gotas caem... Relâmpagos e trovões, confirmam um bendito aguaceiro que certamente teremos mais tarde, provavelmente à noite. Hoje de manhã quando abri a janela do meu quarto e respirei a gostosa lufada de ar puro e úmido enriquecidas pelo cheirinho da terra molhada que ainda alguns meses era seca, esturrecida com a estiagem, lembrei-me imediatamente da minha infância e das minhas travessuras e, concomitantemente, pensei no grande romance do escritor tocantinense Juarez Moreira Filho “Infância e travessuras de um sertanejo” onde ele retrata o mundo rural do sertão onde viveu experiências inesquecíveis da sua infância, numa visão nostálgica, cheio de saudades e antigas lembranças... “Nesta época de chuvas na fazenda Capa-Cachorro... A chuva caia forte, o vento derrubava árvores pelas raízes, trovão balançando a terra, tempo escurecendo, relâmpago clareando o carreiro e o gado molhado berrando estrada adentro...”. O autor ainda nos fala dos pássaros e dos macaquinhos que se viam aos magotes e que pulam de haste em haste perto da fazenda, dos veados campeiros, paca, tatu, cutia, antas, porco queixada, etc. Lembrei-me da minha casa, onde passei a minha infância, nesta época de chuvas, os passarinhos pulavam de haste em haste no nosso pomar. Das frutas silvestres que surgiam neste tempo chuvoso. E lembrei-me do jardim perfumado da nossa casa, cujo florir nós festejávamos... Embora por vezes fortes e violentas, as chuvas são, digamos, efêmeras, lindamente efêmeras, raramente duram tanto tempo. Violentas como vieram cessam suavemente. E surgem esplêndidos arco-íris colorindo os céus. Em Palmas também é assim. As chuvas vêm violentas pousam nos telhados das casas e no chão devagarinho... Suavemente... Com delicadeza... Como “a curva do pescoço de uma gazela”, parafraseando o poeta Agostinho Neto. E deixa-nos, ao sair, a beleza do arco-íris que tem às vezes um toque surrealista, como certa vez em que parecia nascer em nossa casa, como milagre ou, quem sabe, uma “bruxaria”. O que incomodou sobremaneira minha avó Tchirombô Ngola II, filha de Soba, que se pôs a dar explicações esquisitas, mas que eram ricas e belas, por serem tiradas de nossas ricas e belas tradições populares. Tanto em Palmas como no Huambo e “nos sertões bravios do Norte goiano” que nos retratou muito bem o escritor Juarez Moreira Filho, ou melhor, “cabra da peste”, treinado nas dificuldades do sertão, para, afinal, vencer... As chuvas são o bom tempo, contrariando o título do livro: “a chuva e o bom tempo” de Charulla de Azevedo. Porque tanto cá como lá ela é a dádiva que ajuda a embelezar ainda mais as duas cidades que eu amo e que para mim são gêmeas. O horrendo cromo e ocre da paisagem se transformam no mais exuberante dos verdes e encantam os seus habitantes huambensis e palmensis... É o contrário das chuvas que abundam noutras paragens – onde arrastam, destroem e humilham e onde são recebidas com desconfiança pela população por tumultuar a vida; onde o habitante só de pensar que, daí a meia hora pode, quem sabe a bordo de uma canoa, com as suas “tralhas” às costas, ter que buscar um porto seguro, talvez na próxima esquina. Aqui e lá é diferente, ela é alegria, é a esperança, é a fartura, é exuberância, é a calma... É uma promessa de primavera – que toda gente adora. Ela começa de madrugada e nos inunda o coração, a existência se exalta, e as tensões diminuem e o futuro dá uma piscadela marota prometendo amanhãs melhores para as duas cidades que eu amo de paixão. Perguntaram-me numa entrevista por que estou em Palmas há muito tempo... Simplesmente porque amo Palmas como amo Huambo, a cidade mais linda do universo!
Como habitante de palmas, agradeço o meu amigo o prefeito Raúl, por saber cuidar muito bem da nossa cidade! Enquanto chove lá fora... Tomo um bom café, como um bom milho assado e termino esta homenagem a nossa linda cidade...



LIVROS SANGRENTOS DE DÍDIMO HELENO

O SIGNIFICADO DE UMA OBRA POLÊMICA


DE DÍDIMO HELENO





POR JOÃO  RODRIGUES PORTELINHA DA SILVA



O escritor e advogado Dídimo Heleno acaba de lançar a sua mais importante obra: “livros sangrentos”. De uma forma crítica e bem humorada, o autor, relata-nos as contradições e violências expostas nos cinco primeiros livros da Bíblia. Como “vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio, saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter, uns para com os outros, uma amabilidade de viagem” (Fernando Pessoa). È essa “amabilidade de viagem” e compreensão que deveremos ter com o festejado autor tocantinense que, como, nós, indaga-se sobre o sentido da existência humana. È uma velha pergunta que não pode ser reduzida ao silêncio e todos nós o fazemos... Só que Didimo teve a coragem e a “ousadia” de colocar no papel suas indagações e inquietações. Vivemos e trabalhamos, suportamos encargos e cuidados, sofremos e alegramo-nos, experimentamos êxitos e fracassos, fazemos esforços e renúncias, vamos envelhecendo e sabemos que o termo é a morte. Não sabemos nem como nem quando; mas estamos persuadidos de que caminhamos para fim da vida, de que a nossa existência no mundo se encontra sob o signo da morte. Vale a pena viver? Qual é o sentido do nosso existir? Hoje temos novos olhares sobre questão... O homem hoje já não vive mais aconchegado no seio natural de uma fé religiosa comum, com a sua ordem de valores e a sua doação de sentido à vida humana. O homem dá-se conta de que o mundo moderno da técnica, com todo o seu progresso e bem estar, não é capaz de emprestar um sentido conveniente. Sente que este mundo, com todas as suas realizações prático-técnicas, no fundo, não está dominado pelo homem, nem resolve os problemas fundamentais humanos, antes ameaça e não consegue responder à questão do homem sobre o sentido. Quem não possui nenhuns valores e objetivos válidos, que dêem à sua vida sentido e orientação, perde o norte à vida, não sabe o para quê e para onde. Experimenta um vazio interior, um profundo mal-estar e rebela-se. È de fato necessário acreditar-se em algo. Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamo-lo quase sempre com um artífice superior. As coisas tornam-se mais fáceis e mais cômodas para nós. È muito incomodativo que Deus não exista. Porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo. O que nos mete medo é pensamos que se não acreditarmos na existência de Deus nos encontraremos num plano em que há somente homens e assim ele terá total responsabilidade sobre sua existência. Dostoievsky escreveu: se Deus não existisse, tudo, seria permitido!. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido, se Deus não existe; fica o homem, por conseguinte, abandonado; já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. O autor dos “livros sangrentos” acredita que é possível o homem ser bom e mais humano mesmo sem estar “atrelado” a qualquer religião. O existencialismo de sua obra, digamos, filosófica, não é de modo algum um ateísmo, no sentido de que se esforça por demonstrar que Deus não existe. Ele nos remete para uma questão muito polemica: “ainda que existisse o Deus das religiões, ele não poderia ser uma criatura grotesca que nos querem fazer querer. (...) Deus não pode ser aquele senhor do Antigo Testamento. Não pode agir com tanta desconsideração e intimação. Deus tem que ser o que há de melhor e mais nobre em cada um de nós”. O autor preferia um Deus bom, um Deus misericordioso... Talvez um Deus mais próximo do Novo Testamento...



quinta-feira, 4 de março de 2010

NOVO LIVRO DE JOÃO PORTELINHA

O DIA QUE UM NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL


PORTELINHA



João Portelinha é romancista, contista, ensaísta, cronista e nas horas vagas, como ele próprio diz, poeta... Tomou como tema de seu romance histórico exclusivamente consagrado ao emocionante relato da escravidão em Angola e no Brasil... Desde o começo de sua obra, teve a ambição de reproduzir com realismo o que foi o infame comércio de escravos, de maneira mais verídica e mais completa e nos mínimos detalhes, sem buscar evitar o que pudesse haver de banal ou mesmo de desagradável em tudo quanto lhe impressionara sobre a escravidão do seu continente e das duas terras que ama de paixão; Angola, a mãe preta, e o Brasil, seu filho mestiço... A obra é feita de observação puramente naturalista, com uma ampla parte psicológica, das ações bem como sentimentos dos personagens que retratou. Só pelas qualidades do estilista satisfez às leis da estética. Seu estilo é artisticamente formado, transparente e simples, fácil e claro, conduto pessoal, onde mistura realidade com ficção e, plasticamente expressiva. Mesmo nos seus livros anteriores de contos particularmente deixa entrever a sua mestria – que, aliás, de resto, angolanos e brasileiros lhe reconhecem-. Mas é nas descrições da natureza, da dor, dos sentimentos que tais qualidades se mostram mais sedutoras. Nos destinos humanos que pode descrever, sobra pouco lugar para alegria. Os quadros são mais freqüentemente de cores muito sombrias, mas a força evocadora dos seus heróis jamais se enfraquece. Este romance constitui sem dúvida um tour de force como pintura audaciosa e amarga da vida que nos faz lembrar Brecht com suas pinturas sobre a escravidão no Brasil. Intitulou o seu primeiro romance O DIA QUE UM NGOLA DESCOBRIU PORTUGAL, pensando na epopéia do reino do Ndongo e de outros povos que constituem hoje Angola e a maior parte do Brasil. O personagem principal que Portelinha escolheu para o romance, foi à formosa e lendária rainha Nzinga Mbandi e o Nganga Nzambi (aqui, Zumbi dos Palmares) que na ficção são mãe e filho, mas que na realidade, embora não sejam, viveram na mesma época, e têm a mesma origem, a dos Jagas. Nzambi transportado para o Brasil como escravo é um joguete dos que o cercam, desdenhado e maltratado, como todos os outros escravos, não obstante ser “filho” de uma lendária rainha angolana. Pode-se perguntar se fora do Brasil, noutra condição social, ele teria se tornado, verdadeiramente um grande herói na luta contra a escravidão como na realidade foi e, como de resto, é bem ilustrado e romanceado pelo autor? Na realidade são poucos momentos de ficção nesta obra... Poderíamos dizer que é a realidade romanceada pelo autor. As datas, os acontecimentos, os autores, os personagens, com exceção de Tchingira, amigo e escravo de Nzambi são reais. No decorrer deste triste episódio, que foi a escravatura, o autor se compraz em descobrir a beleza da natureza humana; liberto de toda doutrina psicanalítica, permaneceu simplesmente poeta, e soube criar a poesia pura com um traço de grandeza.
As amplas perspectivas sobre o verde doce e fresco circundado de rios azuis que brilham em todo esplendor. Há magia e a beleza retratada das florestas africanas e brasileiras com toda sua pujança circunstanciada com toda sua fauna em movimento; o barulho dos gravetos secos caindo das árvores e dos macaquinhos que pulam de haste em haste fazendo algum barulho é de extrema beleza. Encontra-se aí um sentido da vida que não nasce de um gosto puramente literário, um esforço rumo à influência livre, plena e inteira da beleza... Tudo vibra no infinito e na calma do espaço.
A análise dos personagens alcança uma profundidade notável em sua rapidez e leveza, essas figuras humanas se harmonizam com a fuga das nuvens, com o cair das chuvas, com o aparecimento do arco-íris e o seu jogo de luz, do crepúsculo à aurora de um dia novo. Graças à arte tão sutil do escritor, as palavras ganham certa ressonância e a sua música assemelha-se à de um violino de raios de luz e de cores. No entanto, se quisermos considerar esta obra tão somente no plano artístico ou literário, mesmo assim, não deixaria de ser uma obra original e importante para pesquisa mais do que qualquer daquelas obras consideradas “romances históricos” que o precedeu sobre a temática escravidão em Angola e Na América Latina.
É verdade que o aparecimento do chamado “novo romance histórico” na America Latina e em Angola não começou propriamente com João Portelinha. Nem tão-pouco a temática sobre a escravidão. Aqui, na América Latina, por exemplo, começa com a publicação de O reino deste mundo (1949), do cubano Alejo Carpentier, que assim, como consequência, provocou um ciclo de intensa publicação, tanto de romances históricos tradicionais, nas décadas de 1960 e 70. No entanto, os textos de O reino deste Mundo, de Carpintier aborda dinâmicas sócio - política – econômicas e os confrontos resultantes dos processos de diáspora negra e luta pela liberdade, tanto em um quanto em outro lado do atlântico, mas as populações de Angola seqüestradas para America não são propriamente os heróis do caribe, onde se encontravam predominantemente as populações da Guiné. As populações de Angola construíram outras histórias de resistência na America Latina como a dos quilombolas dos palmares, liderados por Zumbi, que aqui, de uma forma inédita e esplêndida é abordada em estilo de romance por João Portelinha